- Eu sei que tu sempre achaste que poderia fazer tudo, só que agora chegou o momento da verdade. O momento em que todos têm que fazer a sua escolha e focar. – disse a voz arrastada.
Ali no chão da sala, em mais um dia lindo e ensolarado de frio, existia uma guria que não queria ser só uma física ou só uma pseudo escritora, ou só uma oceanógrafa.
Quando era criança, diziam que as pessoas poderiam ser tudo que quisessem, desde que sonhassem. É claro que não é verdade, assim como não existem príncipes encantados.
- A questão é: Porque que falam isso? – falei, irritada. - Certamente não vou falar isso para os meus filhos.
- Ao que tudo indica, nós precisamos de algum momento na vida em que realmente acreditemos, com todas nossas forças, que podemos mudar o mundo. – a voz me respondeu.
- É, pra que exista, em cinco gerações, alguém que consiga mudar o mundo.
Depois de um tempo eu deixei ele ‘sair de mim’. Deixei-o sentar no sofá e me encarar.
- Me fala, Dylan, como tu conseguiu mudar o mundo?
Obviamente não tive resposta. Ele ficou ali sentado usando seu chapéu que escondia seu rosto, longe do sol.
- Não tais com frio? – perguntei. O silencio estava me inquietando, não havia chamado-o para que ficasse quieto.
- Não, mas tu podias fazer um café pra gente. Podíamos ir pra cozinha, sentar em cadeiras. Tens que saber também que não é tu que me chamas, metida. - Dylan falou calmamente, de forma simpática até.
- Não quero café e nem cadeiras. Quero chimarrão e sol, a cozinha é triste. Preciso descobrir que caminho eu quero seguir, podias me ajudar. Eu gosto de ti, agora.
- Por quê? – depois de um tempo ele finalmente sussurrou. – Porque tu subitamente começaste a gostar de mim e porque tens que descobrir um caminho... Existe uma coisa chamada hobby.
- Eu sei e sempre achei que poderia ser uma física que escreve, mas estou vendo que não vai adiantar. Não dá pra escrever bem e pouco. Todos os escritores que eu admiro escrevem páginas por dia. Eu calculo páginas por dia. Pra mim é mais natural resolver integrais e fazer gráficos do que montar frases e fazer um texto sobre a economia do mundo, por exemplo.
- Mas todos os escritores que tu admira escrevem páginas pra que uma frase valha a pena o esforço. A maneira objetiva de pensar é escrever páginas. A tua maneira é só diferente.
- E ineficaz, ruim.
- Então porque tu tens medo de te entregar à escrita?
- Porque eu não gosto do que ela me traz. Prefiro calcular.
- Tu te importas demais, com tudo. – falou Dylan, pausadamente. - Preciso de um café.
- É só colocar água na chaleira, se é que já não tem. Me deixa aqui.
- Em qualquer profissão tu vai precisar escrever, a diferença é se tu quer que escrever seja a tua profissão ou apenas faça parte dela. É uma decisão simples, assim como levantar e ir fazer um café pro melhor compositor já vivo.
Hoje ele estava, surpreendentemente simpático. Sorri bobamente.
- Tu sabias que eu adquiri toda tua discografia? – perguntei, sabendo que ele sabia que sim.
- Mas claro.
- E o que tu sentiste disso?
- Nada. Espero que tu saibas que milhões de pessoas no mundo têm a minha discografia. Milhões de pessoas no mundo fantasiam comigo e milhões irão fantasiar.
- Então é isso? É só admitir que tu é O cara?
- Mas claro que não. Eu ainda acho que não sei escrever. Eu ainda me pergunto por que as pessoas prestam atenção no que eu faço e meus ídolos ainda estão anos-luz a minha frente.
Chega a ser idiota. A gente sempre vai achar que não é muito bom. Independente da carreira que eu escolher.
- E o café? – Dylan sorriu maliciosamente. Não respondi, só olhei pra ele. – Me responde, porque mesmo que o sol fique atrapalhando a tua visão, tu mesmo assim ficas sentada na mesma posição?
- Porque eu to com frio.
- Então, tu continuas aí por uma causa maior. – ele suspirou, impaciente.
- Tá, e ai? Mesmo sendo uma causa maior meu pé ainda tá gelado.
- É, mas tu não entendeste a metáfora, tais precisando de um café. – e sorriu com sua boquinha pequena.
Parei por uns instantes, observando as alpargatas já gastas. Dylan cruzou as pernas, voltei a encará-lo.
- Ok, eu preciso descobrir qual é a minha causa maior. – falei com dificuldade. - Não me ajudaste muito.
- Tens certeza? Vamos pra cozinha?
Braba, me levantei e fui tomar um café com o Dylan.