6 de nov. de 2014

A minute seems like a lifetime, baby when I feel this way

"37
Costumava levar minhas mulheres às lutas de box e e às corridas de cavalo. Naquela quinta à noite fui com Katherine ao box e no estádio Olympic. Ela nunca tinha visto uma luta de perto. Chegamos lá antes da primeira luta e sentamos na boca do ringue. Eu bebia cerveja, fumava e esperava.
– É engraçado – disse a ela –, as pessoas chegam aqui e ficam esperando os dois homens subirem  lá no ringue pra se massacrarem.
– É horrível mesmo.
– Esse lugar foi  construído há muito tempo – eu  disse, enquanto ela examinava com os olhos a velha arena. – Só têm duas toaletes, uma pras mulheres, outra pros homens, e são muito pequenas. É melhor você ir antes ou  depois do intervalo.
– Tudo bem.
A maioria do público do Olympic era de latinos e trabalhadores brancos pobres, mais algumas estrelas de cinema e outras celebridades. Tinha bons lutadores mexicanos que brigavam com paixão. As lutas ruins ficavam a cargo dos brancos e negros, sobretudo os pesos pesados.

Era estranho estar ali com Katherine. As relações humanas são estranhas. Quer dizer, você passa um  tempo com uma pessoa, comendo, dormindo, vivendo e amando, conversando com ela, indo aos lugares – e, um  dia, tudo acaba.
Daí, você passa um tempo sem ninguém, até que aparece outra mulher, e aí você come com  ela, trepa com ela, e tudo parece tão normal, como se você estivesse o tempo todo esperando exatamente por ela, e ela por você. Nunca achei  correto estar sozinho; às vezes, era até bom, mas nunca achei correto.

A primeira luta foi bem boa, muito sangue e coragem. Assistir a lutas de box e ensina alguma coisa sobre o ato de escrever; a mesma coisa acontece com as corridas de cavalo.
A lição não é muito clara, mas eu sinto que me ajuda. Isso é que é importante: a lição nunca é clara. Lição sem palavras, como uma casa se incendiando, um terremoto, uma inundação ou uma mulher saindo do carro e mostrando as pernas. Eu não sei do que os outros escritores precisam, nem me interessa. Não os leio mesmo, Sou prisioneiro dos meus hábitos, dos meus preconceitos. Não é mau ser burro, se a ignorância for sua de fato. Eu sabia que um dia ainda iria escrever sobre Katherine e que ia ser difícil. É fácil escrever sobre putas, mas escrever sobre uma boa mulher é muito mais difícil.

A segunda luta foi boa também. A galera berrava e urrava e se empapuçava de cerveja. Eles tinham fugido provisoriamente das fábricas, armazéns, matadouros, postos de gasolina, e estariam de volta ao cativeiro no dia seguinte. Mas, agora, estavam fora, embriagados com a liberdade. Não estavam pensando na pobreza nem na escravidão. Nem na humilhação do seguro-desemprego e das cotas alimentares. Nós, os do lado de cá, estaremos bem até o dia que os pobres descobrirem com o fazer bombas atômicas no porão de casa.
Todas as lutas foram boas. Me levantei pra ir ao banheiro. Quando voltei, Katherine estava muito quieta. Parecia assistir a um espetáculo de balé ou  a um  concerto. Tão delicada e, no entanto, que foda maravilhosa...
Continuei bebendo. Katherine pegava na minha mão quando a luta ficava muito violenta. A galera adorava nocautes. Eles berravam quando um dos lutadores estava aponto de beijar a lona. Eram  eles que disparavam aqueles golpes. Na certa, estavam esmurrando seus patrões e esposas. Quem  sabe? Quem se importa? Mais cerveja.

Sugeri que saíssemos antes do final. Já vira o suficiente.
– Tudo bem  – disse ela.
Subimos pelo corredor estreito, através do ar azul de fumaça. Ninguém assobiou  ou fez  gestos obscenos. Minha cara amassada e riscada de cicatrizes inspirava respeito.
Voltamos até o estacionamento, debaixo da autoestrada. O fusca 67 não estava lá. O modelo 67 foi o último bom Volks – e a moçada sabia disso.
– Hepburn, roubaram a porra do meu carro.
– Ah, Hank, não acredito!
– Sumiu. Estava aqui – apontei. – Agora sumiu.
– Hank, o que a gente vai fazer?
– Bom, vamos tomar um táxi. Tô me sentindo mal à beça.
– Por que será que as pessoas fazem isso?
– É o jeito de eles se virarem.

Fomos até uma cafeteria e eu liguei pedindo um táxi. Tomamos café com rosquinhas.
Enquanto a gente assistia às lutas, eles arrombaram o carro e fizeram ligação direta. Eu costumava dizer: “Leve minha mulher, mas deixe meu carro em paz”. Eu jamais mataria um homem que tivesse me levado a mulher; mas seria capaz de matar o cara que roubou meu
carro.

O táxi chegou. Em casa, por sorte, tinha cerveja e um pouco de vodca. Perdi a esperança de ficar sóbrio o bastante pra poder trepar. Katherine percebeu isso. Eu ficava andando de lá pra cá, falando do meu fusca 67 azul. O último bom modelo. Eu não podia nem chamar a polícia. Estava bêbado demais. Ia ter que esperar até de manhã, até a hora do almoço.
– Hepburn – disse a ela –, não é sua culpa, não foi você quem roubou ele!
– Tomara tivesse sido eu. Você estaria com ele agora.
Fiquei imaginando dois ou três garotos correndo com o meu baby azul pela Estrada Costeira, puxando fumo, dando risadas, desmontando ele. Daí, pensei em todos os ferros velhos de Santa Fe Avenue. Montes de para-choques, para-brisas, maçanetas, limpadores de para-brisas, peças de motor, pneus, rodas, capôs, capotas, bancos, macacos, pedais de breque, rádios, pistões, válvulas, carburadores, camisas de pistão, engrenagens, eixos – meu carrinho logo se transformaria numa pilha de peças avulsas.
Naquela noite eu dormi  agarrado a Katherine, mas meu coração estava frio e triste.

38
(...)
Me preparei pra terceira corrida, reservada para potros e capões de dois anos sem vitórias. A cinco minutos do fechamento das apostas verifiquei  o totalizador e fui jogar. Ao me afastar, vi que o homem  duas fileiras abaixo conversava com Katherine. Todos os dias tinha pelo menos uma dúzia como ele nas corridas. Ficavam contando vantagem pras mulheres bonitas, na esperança de levá-las pra cama. Talvez nem  chegassem a pensar nisso; talvez não soubessem  direito o que queriam. Viviam aturdidos, baratinados, na lona. Quem seria capaz de odiá-los? Grandes ganhadores! Estavam sempre apostando no guichê de 2 dólares, com  o salto do sapato gasto e as roupas sujas. Estavam mais por baixo que todo mundo.

Apostei  no favorito. Chegou  na ponta e pagou  4 dólares. Não era muito, mas eu tinha apostado 10 na cabeça. O homem  de baixo virou-se para Katherine e disse:
– Acertei. Tinha 100 na cabeça!
Katherine não respondeu. Começava a se dar conta do truque. Ganhadores não ficam abrindo o bico. Têm medo de serem assassinados no estacionamento.
Depois da quarta corrida, cujo ganhador pagou  22,80, o cara se virou  de novo e disse a Katherine:
– Acertei  esse também. 10 na cabeça.
Ela me disse:
– Olha só a cara dele, Hank. É amarela. Você reparou nos olhos dele? É doente, coitado.
– É doente de sonho. Todos nós somos doentes de sonho, por isso estamos aqui .
– Hank, vambora.
– Tudo bem.

Naquela noite ela bebeu meia garrafa de vinho tinto, de bom vinho tinto, e ficou quieta e triste. Sabia que ela estava me identificando com  a turma das corridas e das lutas de boxe – e era verdade. Eu andava com eles, eu era um deles. Katherine sabia que tinha alguma coisa fora do lugar em mim. Eu era uma soma de todos os erros: bebia, era preguiçoso, não tinha um deus, ideias, ideais, nem me preocupava com  política. Eu estava ancorado no nada, uma espécie de não ser. E aceitava isso. Eu estava longe de ser uma pessoa interessante. Não queria ser uma pessoa interessante; dava muito trabalho. Eu queria mesmo era um espaço sossegado e obscuro pra viver a minha solidão. Por outro lado, de porre, eu abria o berreiro, pirava, queria tudo e não conseguia nada. Um tipo de comportamento não se casava com o outro. Pouco me importava.

A trepada foi ótima naquela noite, mas essa foi a noite em que perdi Katherine. Não havia nada que eu  pudesse fazer. Rolei pro lado e me limpei com os lençóis. Ela foi ao banheiro. Um helicóptero da polícia sobrevoava nossas cabeças, patrulhando Hollywood."
Mulheres
Charles Bukowski

Estava eu no ônibus lendo o velho Buk quando senti estes trechos como socos no estômago. O que se seguiu foi mais triste ainda e influenciou na minha aura. Foram flashbacks intensos em que vi praticamente minha vida toda. Aquelas 5 páginas que contam os momentos com Katherine me fizeram grudar no assento e fazer a típica pergunta: o que estou fazendo com a minha vida?
Saber que não posso lidar com os problemas da forma antiga mais me atormenta. A verdade é que tenho me afastado de muitas pessoas, tantas que sinto medo de desenvolver os antigos sentimentos ruins.

Cada vez que puxo o livro dentro do ônibus o faço de forma lenta e cuidadosa, o mesmo se segue na devolução dele pra mochila. Movimentos calmos e de proteção.
Livros são só livros, mas o Buk continua sendo o Buk. E eu o leio quando as coisas não vão bem. Ele tem me feito olhar fundo nos meus defeitos e enfiar os dedos grossos nas feridas abertas. Não me sinto apta a nada. Inclusive me pergunto como consegui me arrastar até aqui e penso que talvez não esteja tão mal assim.
Não tenho vontade de nada e isso me apavora. Não quero de jeito nenhum regredir e ter aqueles sentimentos e pensamentos negativos.

O Led voltou a tocar com tudo e sinto falta de fones de ouvido. Nunca entendi a fixação das pessoas por Kashmir. 
Não tenho me sentido no controle das situações. Apenas faço o que sou mandada. Incômodo. Todos os dias.

Não me vejo bagunçada, me vejo com medo e esgotada. Lutas constantes e o sentimento de não ser bem interpretada têm me tomado a mente. Voltei a usar máscaras durante parte do dia porque é a saída mais fácil, mas é uma fuga. Sempre que me pego agindo assim tenho voltado ao controle. Não quero fugir mais e talvez esse sentimento de esgotamento queira dizer que eu, finalmente esteja chegando a algum lugar.

Autenticidade e movimentação. A chave é não se deixar parar, movimentar-se nem que isso custe joelhos esfolados de tanto se arrastar. Aprendi isso.
Hoje, Buk e Led me dão força para traçar todas as linhas de proteção à minha volta e quem sabe, ao final deste ciclo, não esteja na hora de finalmente tatuar o ciclo protetor?

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